prosa pra pirar

prosa pra pirar
prosa de poeta engasga até profeta

quinta-feira, 26 de abril de 2012

entrudo



        A manhã molhada quase me deixa triste. Raios de sol em riste, não virão iluminá-la de cromos as ninfas ou as musas. Não virão, o azul lazuli do infinito e o branco indeciso das nuvens, atormentá-la de beleza. O vento frio, farejando as frestas da casa, anuncia a liquidez e a frialdade do dia. A manhã molhada quase me deixa triste. Não fosse esta memória futura saltitando lembranças presentes. Não fosse esta cena passada, aprisionada a certos lapsos e reminiscências do quando. A quase tristeza desta manhã cedo é seda tecida pelos dedos ágeis das águas. A chuva é o charme desta quase tristeza. Nenhuma lágrima logrou alagar os olhos. Ilhas que são, os olhos enxergam nadas lá fora. Exceto, talvez, a umidade da manhã, mais dentro que fora deste agora.

O silêncio da alvorada é cortado, timidamente, por um ou outro pássaro matinal. O canto não tem o calor de sempre, apenas a melodia se repete – tema tautológico, ad infinitum. Um sanhaço aqui, um bem-te-vi acolá, o tema se desenvolve de silêncio em silêncio, como num concerto minimalista. O silêncio soa por fora e por dentro da manhã molhada. Mesmo o poema que se escuta no dial do cosmos é sinal de silêncio. O cio e o ócio na voz que tece o verso somam-se ao silêncio celestial desta manhã, em que, quase triste, invento ventos nas frestas.

A manhã molhada quase me deixa triste. A insânia e a insônia alertaram a visão periférica para esta quase tristeza desenhada na janela. O não-sol segue exposto no plúmbeo da abóbada. Sei disso porque me segredaram as nuvens. Os galos, esquecidos da lição cabralina, não tecem manhã nenhuma. Nem mesmo esta molhada e silenciosa. É provável estejam quão triste encontro-me. Por isso prosa e não canto. Por isso o mesmo espanto nos galos e em mim. A manhã molhada quase nos deixa tristes.

Mas a manhã segue molhada como se feita de igapós e não de terras firmes. Feita de valas e não de vales. Os últimos pingos desgastam-se rumo ao esgoto gótico desta cidade fágica, indiferentes à manhã molhada que me deixa quase triste, como se acreditassem ser chiste a tristeza que inventa ventos nas frestas desta memória futura. Vou com eles por nada. Em tudo, entrudo.       

quarta-feira, 18 de abril de 2012

InvenSão V

O fato de flutuar pelo quarto com a leveza das salamandras e sentir o espírito impregnado de essência fêmea e felina, causou-lhe certo estranhamento. Ao caminhar por entre os móveis, requebrou mais que de costume – o balancê nas cadeiras incomodou sua memória masculina. Quando tentou cantar para, quem sabe, espantar aquela estranha sensação, quase teve uma síncope: a voz que saiu de sua garganta era um misto de Tetê Espíndola e Barbra Streisand. Pensou em “Escrito nas estrelas” e “Superman”, por um istmo de segundo, e suspirou saudoso.

Ocorreu-lhe pedir ajuda, porém, o som que saiu de sua boca era tão melódico e melífluo que achou impossível gritar com tal voz. Desesperado, tentou sumir da cena, mas tropeçou nos saltos e foi aos braços do amante que o acolheu curioso e apaixonado.

O arrepio que percorreu Lé Zinho é inenarrável. Correu ao espelho para ver o que havia acontecido e deparou com sua metamorfose no aço. Viu, estarrecido, que era uma mulher deslumbrante e bela. Tão bela que o fazia se sentir orgulhoso. “Deus, que loucura! Agora sou uma princesa!”, pensou. “Ainda ontem, antes de dormir, não fizera a barba? Que viagem era aquela?”, resmungou. O cheiro que o parceiro deu em seu cangote o resgatou do devaneio.

Os beijos arrebatadores não o assustaram tanto quanto a maneira como foi jogado na cama e possuído pela ternura e desejo do amante. Apesar de continuar pensando como homem, achava aquilo tudo novo, lindo e bom. Ser mulher começava a lhe parecer deliciosamente desafiador.

Por outro lado, algo dentro dele resistia, pensando a coisa como um pesadelo do qual a qualquer momento acordaria. Esse momento, porém, parecia ser retardado pelo prazer que começava a sentir com as mudanças. Lé Zinho estava em crise com seu passado e presente sexual: uma crise de gênero. Essa crise promoveu um súbito apagamento da memória masculina e ele passou a acreditar que sempre fora mulher. Sim, uma linda mulher que se chamava simplesmente Lé.

A partir de então, passou a viver como uma fêmea de estranha e atraente natureza. Além de uma vida cultural movimentada, talvez uma memória inconsciente do passado esquecido, levava a cabo uma agenda de parceiros e amantes muito intensa e diversificada. Vivia feliz em meio aos poemas que escrevia ao acaso, em folhas soltas e manchadas de vinho (ou seria de sangue?), e se divertia rolando em lençóis de seda dos quais evolavam perfumes profanos e púrpuros. Caminhava nua pela casa e recitava Ana Cristina César, Alice Ruiz, Ledusha e Clarice Lispector. Às vezes, meditava sobre o que comer à noite: um poeta ou um crítico? Ria. Os versos vinham entremeados de devaneios e desejos seus. Ria o riso das saciadas.

Numa certa manhã de primavera, afetada pelos efeitos florais da estação, Lé acordou sentindo aquele algo que, tempos atrás, resistira dentro de Lé Zinho e que subitamente havia sido apagado de sua memória. Reflexo incondicional, levou a mão à braguilha como quem vai coçar o antigo sexo. Ficou por demais feliz ao sentir o calor úmido, a um só tempo mágico e macio, dos lábios violáceos envolvendo seus dedos. Sentia-os abertos em flor. Na primavera as flores são sempre lindas. E Lé, como toda mulher, gostava de flores. Fez um buquê de palavras flores e tatuou em seu corpo. Ao redor do umbigo.

quarta-feira, 21 de março de 2012

InvenSão IV

Cool da madrugada, em algum pub da rua Brasília, Lé Zinho pedia pela quinta vez que o barman repetisse, no telão, A nigth in Tunisia, interpretação inspirada de Dizzy Gillespie que o tocava profundamente. Pedia e chorava em único e mesmo gesto. Horas antes a cena se repetira com So what, do Miles Davis. A mesma quantidade de repetição e de lágrimas. O garçom, seu chegado, não se importava em intermediar os desejos daquele lobo solitário e sedento. Pensava apenas que a figura poderia se desidratar duplamente: pelo excesso de vinho e de lágrimas. Vez em quando rompia o silêncio cúmplice:

- O que na verdade te fere tão profundamente ao ouvir essas músicas estranhas repetidas vezes?

- Você tem sorte de eu não gostar do Reginaldo Rossi – ironizava Lé – pois agora eu estaria cantando “garçom etc e tal” e seriamos dois a chorar perdidamente.

- Mas Lé Zinho essas músicas não têm nem letra...

- Não importa. Dor e solidão não têm tradução verbal, só trilha sonora. Prefiro chorar ao som de músicas sofisticadas, ainda que “estranhas”. Talvez eu esteja desenvolvendo um conceito de tristeza inteligente.

O garçom quase conseguia entender Lé, pois fora testemunha da cena protagonizada pelo boêmio e uma beldade linda e louca, dessas que flutuam ao seu redor, ainda no início da noite. Nada escutara do que dissera a princesa, mas pelos poemas recitados afetadamente pelo príncipe, falando da impossibilidade de pertencer a alguém, de cantar o amor e não a paixão, deduziu que se tratava de mais um canto à liberdade, mais um solo de palavras estranhas que, parece, vinha das entranhas daquele atormentado ser.

Lé, à distância, adivinhava o pensamento do barman e quando terminou a música solicitada, olhos vermelhos de loucura e pranto, bradou:

- Coloca aquele CD do Edvaldo Santana que tem Lobo solitário. Essa tem letra. O garçom vai gostar.

- “Falam que pra mim o sinal está fechado / que sou muito ansioso / chego sempre atrasado / que eu não vou dar em nada / que sou muito arrogante / um cavaleiro errante na madrugada”. O cara te conhece? – gracejou o barman.

Lé Zinho nada respondeu. Apenas chorava. Antes mesmo de terminar a quinta repetição, pagou a conta, abraçou o amigo garçom, o barman, e saiu cambaleante pela porta entreaberta da madrugada. O relógio na parede cravava o ponteiro maior no doze e o menor no cinco. Sabia que os anjos lhe levariam inteiro para casa. Enquanto vasculhava o bolso em busca da chave, ainda ouvia o refrão da música: “Sou o que sou / um lobo solitário procurando amor / sou o que sou / um bicho na cidade procurando amor”. Sabia da lágrima escondida dos homens.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

InvenSão III

A sexta-feira chuvosa escondia o pôr-do-sol que sempre incendiava os fins de tarde amazônicos. Lé Zinho adivinhava as margens do Madeira escurecendo como nas pinturas simbolistas de Franz Von Stuck. Pensava em Sunset by the sea e ria do absurdo da comparação. Bebeu de uma vez o suco de cupuaçu que repousava no copo sobre o parapeito da janela e deu início ao ritual de preparação para a noite. Tomou banho. Fez barba. Escovou dentes e cabelos. Colocou jeans desbotado, camiseta básica e perfume preferido. No som do quarto, Lenine in Cité fazia as coisas dançarem. Conferiu o perfil no espelho, ensaiou umas poses, riu e partiu rumo à noite de Porto. Em algum lugar do peito o coração ansiava “um nada de felicidade”.
Assistiu show. Foi ao bar. Voltou para casa levando aves noturnas recolhidas pelo zoom da objetiva de sua subjetividade.

- Vinho ou cerveja? - Lé Zinho perguntou.
- Que tal os dois? - disse a mais sedenta das aves.
- Então tá. Os dois - aceitou sem resistência.

Foram-se as bebidas, os musicais e os outros ais, restando somente a mais bela ave, a bela nave que se identificou com o seu plano de vôo. Lé lia versos de Roger Waters na tela da TV e ouvia ruídos e movimentos sensuais que a noite inventava. Lembrou-se de Sin e Salomé, de Von Stuck, sem cogitar ir vê-los. Receio? Foi com a ave nave na noite.
Dia seguinte, Lé olhava da sacada ruminando delírios e reminiscências.

Ela disse conta uma estória quando não havia estória alguma. Quando só havia eu e ela para, quem sabe, compor os corpos nus da estória. Mas ela argumentou que sempre pedia e ninguém contava. Achei que devia. Sei que não sabe da minha incapacidade de contar. Prefiro cantar, recitar. Olhos, lábios, seios, umbigo, sexo, todos olhavam desafiadores, esperando emergir a prosa em mim. Contei. Duas estórias. Nada mudou. Ficou muda. Depois com frio. Quis partir. Pensei: por que não pediu uma canção? Por que não fez soar em mim Drummond, Bandeira, Baudelaire, Leminski, Antunes, Mallarmé? Não. Queria estória. Matutei: será que existe disque estória como existe disque pizza e disque droga? Ela pediu estória onde só canção e poesia. Por isso não me espantei quando, ao deixá-la em seu ninho, vi, por entre os dedos iluminados da manhã, seu sorriso lindo se desfazendo em adeuses.

Os olhos de Lé Zinho acompanharam uma revoada de andorinhas que, partindo das antenas sobre o prédio, migravam em direção aos semáforos. Lé fazia pose de quem havia entendido o amarelo do sinal. Então contou de uma vez a estória:

- Era uma vez uma ave exata.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

InvenSão VI

Ônibus Campus/Unir vindo para a cidade,numa sexta-feira.

Ele: Posso sentar aí?
Ela: Pode. Rola um papo que o ônibus é nosso. Que curso cê faz?
Ele: História. E você?
Ela: Letras.
Ele: Letras? Que onda! O que vocês aprendem no curso de letras? A fazer letras de forma ou letras mortas?
Ela: Nenhuma das duas. A ideia é ler e questionar criticamente a literatura, a gramática e a linguística.
Ele: Nossa, que sinistro! Posso dizer que é um curso crítico?
Ela: Não, seria redundante, pois críticos estão todos os cursos superiores públicos. Mas pode dizer que é um curso de crítica. E o que vocês estudam no curso de história? Estórias da Carochinha?
Ele: Não. Ou melhor, também. O grande lance do curso é problematizar a projeção da fala na história. Essa coisa do oral, tá ligada?
Ela: Tô. Já experimentei com o meu namorado. É uma loucura!
Ele: Não é nada disso, mina. A coisa é séria. Tem até um professor nosso que escreveu ser “a História oral, antes de tudo, perspectiva política, um achegar-se ao ser social, aos homens vivos, aos seus problemas, antes e como condição de uma reflexão, de uma práxis mais atuante, mas complexa e vasta”.
Ela: Caraca, moleque, a figura foi fundo, hein? Quem é a fera?
Ele: Na história oral, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.
Ela: Cara, você me impressionou com essa citação. Pois fique sabendo que um grande autor, que infelizmente não é nosso professor, escreveu que “A crítica não é uma ‘homenagem’ à verdade do passado, ou a verdade do ‘outro’, ela é a construção da inteligência do nosso tempo”.
Ele: Égua, mina, o cara é quente! Quem escreveu isso?
Ela: Na crítica, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.

Pausa de duas paradas.

Ele: Porra, o papo ficou cabeça demais, muito acadêmico, não é mesmo?... Mas mudando de assunto: um bequizinho de vez em quanto cê curte, né?
Ela; Não. Beque só back vocals ou flashback. Sou mais um vinho do que unzinho.
Ele: Nunca ninguém levou você ao tatuzão, para assistir um pôr-do-sol e dar uma bola?
Ela: Não. Nunca.
Ele: Que coisa! E balada, cê se amarra?
Ela: Só a “Balada do Esplanada”, do Oswald de Andrade, e a “Balada de um vagabundo”, do Cazuza. O resto é aluguel e perda de tempo.
Ele: Gata, tenho que confessar: tô pirando na sua. Cê é diferente pra cacete.
Ela: Demorou, hein? Só acho que você tá precisando praticar mais a oralidade... Desço aqui nessa parada. Tiau.
Ele: Ei mina, esqueci de perguntar: qual é o seu nome?
Ela: Em cantada mal dada, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.
Ele: E amanhã, na cantina, posso tentar de novo?
Ela: Não sem ler todinho o Manual de história oral. E depois, Mané, amanhã é sábado. Fui.
Ele: Meu nome não é Mané, é Lé, Lé Zinho. Égua da moleca!...

O ônibus dobrou rumo ao centro, carregado de interjeições e silêncios.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

InvenSão II

Popstar de última geração, Lé Zinho, lap top à mão, cinco minutos antes de começar o show tentava, a todo custo, baixar um mega sucesso cálido y caliente que ouvira num site latino. Não queria mais chorar sobre o bright entornado em turnês de fracasso. Tramava tocar no rádio. Clip na TV. Ninguém notaria a tramóia. Faria parecido, não igual. Chupada eletrônica com sotaque andino. Seria a glória. Rezou pra São Rod Stewart, redentor dos plagiantes, e pirateou a idéia. Piração na rede. Apelo informatizado. Maquiavelismo cibernético.

O guarda-costas, num nada de atenção, coçava as calças assobiando um breganejo goiano. O olhar carinhoso na direção do astro. Fã com o afã nos afazeres.

Eurico, o assistente, contratado para driblar o fracasso, após pouco pensar, proferiu:

- E!U!R!E!C!A!. Que tal a velha e boa discoteca?

- Bom cabrito não berra – declinou o ídolo sem índole.

O empresário, prisioneiro dos ponteiros, fraseou eufórico:

- A galera está gritando a gosto. Carece ouvir tua voz, ver o teu rosto. Vai: é a tua hora. O palco está posto.

Saiu da rede e entrou no palco. Um swing dantes nunca alçado. Metais em brasas. Percussões troando Áfricas. Lé salseando tudo que sabia. Entortando cândidas melodias. Bolerando sem Ravel. Pop tropicanalha. Trejeito porteño. Meio malafo caribeño. Vivendo intensamente o simulacro dos ventos. Velhos os novos tempos. Floriu formas e arrasou de cabo a rabo aquela noite de festa e fama. Foi fortemente ovacionado por violões ovations e por vozes várias. Um sucesso!

Fim de noite, nos braços do guarda-costas, Lé Zinho, ensandecido de vaidades e vodkas, - consciência fazendo peso -, jurava ter visto um brilho sinistro nos olhos de Lucho Gatica. Vingança? Revide? Justiça?

- Valei-me São Rod Stewart! – rezou contrito.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

InvenSão I (para paroaras e paraenses)

Mago amazônida, Lé Zinho vivia alvorado de alegorias líricas. Calhava, às vezes, amanhecer pra épico. Alegrias e alergias mitológicas o tomavam de assalto e o levavam à leitura. À loucura. Cismava horas a fio lendo lendas. Mirando mitos. Lé lia o mundo. Lia lindo.

Nascido a boto, aluava rumores e rubores ribeiros. Assuntava barrancos e bordéis. No mais, era dado a plenilúnios e solstícios. Engolia fogo fátuo. Curava paixão encravada com reza brava e, de lambuja, cozia poemas e panos pra manga. Ah – ia esquecendo -, bebia um chá, diz-que.

Manhã de agosto, gastava a morenice tirada das árvores – mulateiro ou rouxinho? – manhosando olhar no aceiro do horizonte. O raciocínio rabiscando réstias. A atenção periférica ativada. Num repente, soslaiou uma figura fugidia. Modos diáfanos. Uma sinestesia, quase. Linda! Firmou o foco. Reparou na lua do branco do olho. No bronze da nudez. Pirou! Encantou palavras e parlou:

- Aonde, jantão, tu pensas que vai, enjoadinha?
- Vou à fonte falar miolo de pote – disse a pequena.

Amaciou e emendou o mago:

- Pensas que me engana, Ana? Sei sussurros e suspiros ao teu desfile de garça. Fálicos e frouxos desfalecem. Tua tez, tua pose, teu pavoneio de prosa, sei com quem tens parte. Tua arte, sei da sorte.
- Sabes? – devolveu a dita.
- Sei. Por isso, aquelazinha, fica no meu verso, no meu vasto. Vadeia o que em mim é tucuxi.

Ela elidiu o lastro lustroso da lábia do mago e retrucou:

- Nem morta, mano! Do trocadilho do teu texto, do vírus do teu vernáculo e do oráculo do teu sexo, quero distância. Ficar no teu verso? Mas quando.

Lé Zinho, nortizando palavras de ordem woodstockianas, promessou porção mágica, sexo e carimbó no ouvido da felina.
Tonta e tantas, tripudiou sobre a excitação transfigurada do artífice. Foi à fonte.

- Pávula! – praguejou o pajem – tu me pagas!

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A PIPIRA E O PAPIRO

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Poemas e canções são minhas sinas. As musas se multiplicam em palavras e a lavra de versos aumenta. O inverno é apenas um detalhe nesta manhã de sexta-feira. Os pombos passam batendo asas rentes a minha janela. Quase adivinho a delícia do vôo deles. Morar em apartamento tem muito de morar no ar. Mas é um vôo preso ao chão. É bem verdade que o verde dos quintais parece acenar pra gente. Pode ser que seja só viagem, mas acho que conheço o casal de sanhaço que mora no jambeiro da esquina. Pensando bem, acho que conheço também o casal de curió que (na)mora na copa da ingazeira do vizinho. Tem uma passarinha linda, uma tal de pipira, que me esnoba. Mas não ligo: canto, sempre que posso, uma canção dizendo a ela do meu amor. Sei de sua paixão por uma flor copo-de-leite, mas digo sempre a ela que sou mais eu. Ela diz que não fomos feitos um para o outro. Digo que ninguém foi feito para o outro e sapeco um solo de bico no seu lindo ouvido da pipira: ela pira e paira. Tem passarinha que é assim mesmo: avoada. Talvez chova até o fim do tarde. Talvez não. Fico pensando que a distância é um riso na boca do silêncio.

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Tudo na levada do Madeira: devagar e sempre. Os dias começam a ficar mais frios. Como diz o povo: é a friagem chegando, anunciando o fim da temporada de chuvas. Prenunciando a estiagem. Sei disso porque escuto os passarinhos do meu prédio conversando a respeito. A pipira linda do quintal do vizinho me segredou que os ocasos serão, doravante, mais lindos e variados. Ela sabe das coisas, mas ainda assim fico esperando por uma surpresa que me arrebate e me leve até a beira do rio. Poderia ser até ela, a pipira, a me levar em suas asas de luz. Pôr-do-sol me seduz.

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Os dias aqui parecem feitos de fantasia. É como se a natureza brincasse com nossa sensibilidade, indo de extremo a extremo da beleza sem ao menos piscar. Tem dias que a chuva ainda vem e nos toma de assalto nas biqueiras e nos beirais das casas. Tem dias que é o sol que brinca de inventar vitrais nas frestas e janelas da manhã. Tem dias que só a pipira (a lindinha que amo) é capaz de entender a natureza. Nada lhe pergunto, pois sei o quanto ela é pretensiosa sobre saber das coisas do mundo. Diria até que tem horas em que ela é arrogante. Mas, como já falei, não ligo: quem ama perdoa até a arrogância de uma pipira metida à besta. Quando canta, eu me desmancho todo e sou feliz como se ela me amasse. Porém, tem aquela fálica flor copo-de-leite que não sai da cena. Talvez a pipira só ame a si mesma. Flerta e se refestela com copo-de-leite e comigo. Dissimulada.

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Numas dessas manhãs em que as nuvens manhosam mansas, a pipira apareceu com uma tonalidade estranha no canto. Um pipipi meio papapá. Um larilari meio larilará. Saquei logo: estava disfarçando alguma coisa ou, talvez, querendo se desculpar pela pulada de muro (ou seria de galho?) com certo pardal imigrante. Fiz de conta que não era comigo. Lá embaixo, a copo-de-leite se fechou como uma ostra, deixando claro o sentido da palavra ostracismo. A pipira, sabendo que é poderosa com relação a nos dois, continuou com aquele lereleré amolante e artificial. Cantei quase em sua orelha um trip-hop que ela ojeriza. Ela continuou lá. Encostei um pouco a janela. E ela lá. Recitei um poema que ela odeia. E a danadinha lá. Larilari, larilará. Piripipi, parapapá. Até que ela apelou: mandou um solo de assobio, tecido da mais leve textura de ar, que misturava minha música preferida com a de copo-de-leite. A flor lá embaixo se abriu com tanta violência que quase se rasgou. Aqui em cima, escancarei a janela com tal força que por pouco não a arranquei. E ela ali, linda, arrepiada pela brisa doce do seu próprio canto. Mais narcísea que arrependida. E eu e a flor também ali, derretidões, pão com banha. Depois, a linda pipira sumiu em direção ao arvoredo, seguida de perto por três sanhaços pra lá de azuis. Ah, amada infiel e insaciável! Estava só testando nosso amor. Copo-de-leite ficou pê. Eu também.

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Falando em palavrosa, ela, a pipira, anda que é só conversa fiada. Depois daquele sumiço com os azuis (lembram?), fica passando de um lado para o outro, na minha janela, falando (cantando?) pelos cotovelos (asas?). Pego as frases aos pedaços: "você é meu poeta preferido... nunca mais cantou minha canção... tem umas penas novas que quero lhe mostrar...". Sei que é apelação. Quando ela tem culpa no cartório fica desse jeito: caótica e apelona. Assovio, despistando. Só volto a falar com ela depois do verão: está decidido! Eu conheço o seu cio na estiagem. Não vou suportar mais um verão de traições e travessuras. No inverno, converso direito com a lindinha. Ela que me aguarde. Fiquei sabendo que copo-de-leite a perdoou. Então, ela que agüente deslizes e despistes dessa insatisfeita pipira. Ela que pire. Olho bem distante e aposto que vejo o sem-fim do mar.

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A poesia que fiz foi pródiga com a pipira. Vislumbrou versos de findar o fôlego, inquietarem a mente. Pensa que ela ligou? Fez que não fosse com ela. Desfaçatez e insensatez. Nem aí para nada. Quase a mandei se... Mas o amor, que a tudo perdoa, declinou da agressão. Ela agora anda de onda com um chico-preto metido a bosta, que passa as manhãs pulando na cabeça de um mourão. Ela acha isso lindo. Não vejo graça. Nem a copo-de-leite. Aliás, estou começando a me cansar das perfídias pirantes da pipira. Égua da passarinha insaciável! Mas, não posso julgá-la, sofro de mal igual. Estou apaixonado por uma sabiá que veio morar no telhado ao lado. A loura é tão lindinha que enlouquece qualquer cantor. A pipira desconfia, mas se faz de gostosa. É típico dela. Deixa ver o que vai dar esse novo affair.

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A sábia se mudou e a pipira voltou cantando "quero que você me aqueça neste inverno". Tentei olhar em seus olhos para ver se podia sentir firmeza nas suas palavras. Ela despistou: olhou para um quadro do Miró na parede, depois para a capa do Let it be dos Beatles em cima da mesa e, finalmente, olhou para a infinitude azul do céu lá fora. Não mudou nada: continua dissimulada como sempre. Olhei pela janela para ver se ela estava sozinha e ainda deu tempo de ver os dois curiós que lhe faziam companhia se escondendo por detrás do galho de ingazeira. Ela sentiu que eu tinha sacado a tramóia e, num golpe de puro reflexo canalha, trinou o seu solo de bico que mais amo. Tenho que confessar: chorei muito durante a execução! Quando terminou o solo vi que a bandida me espreitava com os olhinhos semi-cerrados. Puro charme. Coloquei um disco do Sigur rós (sei que ela odeia essa banda) bem alto, só para ver se ela desistia do teatro. Ela pousou no meu ombro e entoou inebriantes e líricas letras de amor. Estou tonto até agora. Ela sabe como me fazer abrir mão dos meus princípios. Vou ter que conviver com ela (mais os dois curiós) durante esse inverno "e que tudo mais vá pro inferno". Quando seu bico tocou meu lábios, antes de partir (com os dois bandidinhos) rumo à imensidão celestial, saquei que estou condenado a amá-la e odiá-la pelo resto da vida. Tenho esperança: quem sabe no verão as coisas mudem? Será?...

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Nem bem o ano novo pulou o muro do tempo e ela, a pipira bela, já tomou posse da minha janela. A sedução é grande e eu temo não sobreviver a mais esse capítulo de amor. Agora deu para só cantar os solos seus que mais gosto. Tenho chorado e rido de emoção: passeio embriagado pelo vão da casa, palmilhando a solidão do inverno. Ela me espreita pelos vãos das janelas e portas. Sabe do meu amor e me fere para saber até onde ele vai. Tento reagir, mas sou fraco diante da sua leveza de musa. Tenho cá pra mim que o inverno será um inferno em flor. Lá fora ela me ensina a voar. Cá dentro morro de medo de altura. Ela diz por aí que me ama, mas o que tenho são lembranças esparsas de sua afeição ufana. E nessa pisada, os dias passam, a chuva passa, a uva passa, só a sede da passarinha não cessa. O lusco-fusco nos olhos do crepúsculo acende sua chama interior e incendeia a cena na boca-da-noite. Ela não tem ocaso. Nem arrebol. Em assim sendo, resguardo-me.

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Naquela manhã de novembro ela apareceu com suas coisas debaixo das asas pedindo pra voltar. Olhei em seus olhos e vi algo que nunca tinha visto: ela sente medo de amar! Vi isso no seu canto de sempre. Em seu vôo de sempre. E eu que continuamente fora tão atento aos seus gestos não percebera que assédio a sério a deixava assustada. Falei assim: pipirinha, minha linda, tenha medo não. Sou o que sôo, mas não vôo só. Entre limites e deslimites não conheço a linha que define cada um desses horizontes. É de minha natureza poética amar ininterruptamente e com intensidade. Sei de arcanjos no jardim e de borboletas nos casulos. Sei de cobras e lagartos na língua do mundo. Ela me ouviu calada como só as pipiras lindas sabem ouvir. Sorriu quando eu confessei que sei pecar por excesso mais que por omissão. Olhou nos meus olhos como quem se vai e foi em busca de algo menos divino que um poeta profano. Ainda sorriu quando ensaiei os primeiros acordes da nossa canção. Porém, cismou dizer não ao que mais queria e a lágrima que rolou de seus olhos se esfacelou nos senões do sim. Chamei o seu nome, mas nem o eco trouxe a resposta. Pousada na janela a pena pênsil ensinava o adeus.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A MENINA DO SONHO (invenSão a dez dedos)


I
Na saída para a caminhada matinal, deu de cara com a moça que estava no seu sonho. Viu de relance a asa de borboleta voltejando ruflante em sua espádua de musa. Bilou na sua blusa leve a pintura da noite anterior diluindo-se nas cores pastéis da estampa. Quis dizer alguma frase que tocasse a menina do sonho. Lembrou a canção de Gil: “Hoje a menina do sonho não veio me acordar”. Pensou que seu caso era diferente. O real era o contrário. Então cantou: hoje a menina do sonho sim veio me acordar. A melodia ficou um “não” menor. Um “sim” maior. Não importava. Era ela, tinha certeza, rememorou seus olhos acesos na escuridão clara da lua. Lembrou da rua, da roupa que ela despia, enquanto as flores no jardim vizinho explodiam em êxtase de clorofila rosácea. Firmou o passo na direção da manhã, mas a memória não desgrudava do passado próximo. Ficou sem inspiração para continuar a cena e encerrou o parágrafo.

II

Minutos depois tentou novamente. As reminiscências piscavam feitas as luzes ainda acesas da cidade. Veio-lhe a imagem do beijo interrompido a meio caminho dos lábios. O casal que passou fugidio entre seus corpos. Depois ela olhando para a lua que quedava frente à alvorada inflexível. Sentiu seu corpo suspenso no fio de desejo que costurava seus instintos ao dela. Era ela, ele sabia, a menina do sonho, a moça da quimera noturna. A borboleta que volteara sobre e sob sua luz até o esgotamento gozoso. A fala de fada safa ecoando decibéis em sua caixa de ressonância cefálica, enviando comandos fálicos para seus atos falhos. Olhou para trás a tempo de ver o ponto final forjar o limite da frase. Faltou piração na trama. Mais um parágrafo de insatisfação.

III
Dias após, num sonho simbolista, a menina reapareceu em meio a nevoeiros intensos, arvoredos outonais e luas extáticas. Diáfana como as begônias ensandecidas pela escuridão ladina simulava penumbras e claros na noite, este algum lugar em que as definições pouco podem para exprimir a paisagem humana. Veio envolta na nudez com que a leveza veste as musas vaporosas e, súbito, o surpreendeu portando, entre outras coisas, vírgulas nos olhos, exclamações na boca, e interrogações nas orelhas. Alguém bate a porta antes do afago ansiado. O beijo se espatifa ao som da campainha. A menina some. A visita apaga a cena. O ponto de exclamação no fim do parágrafo é inevitável: cai como o raio que divide estranhas realidades!

IV
Sai a visita. Volta a menina. Agora apenas uma ideia forjada na ponta dos dedos que digitam a lembrança fugidia. A menina do sonho se materializa na virtualidade e navega o ciberespaço da solidão do homem. O mesmo outro homem saindo para a caminhada matinal que o levará ao encontro da mesma outra menina do sonho. Do outro mesmo sonho. A noção de indeterminação assalta o sujeito oculto na voz que conta. O ponto final sai sem fechar a porta entreaberta das reticências...

PAI SEM PROSA

Ela perguntou papai você sabe contar uma estória como quem pergunta papai você pode acender a luz. Disse que sabia e que era uma vez um menino um lugar e um tempo. Tinha passarinho igarapé e muita mata. Tinha baladeira peteca e pião. Casqueta e curica sei que tinha. Cerol e linha branca tinha. E era manhã tarde e noite. Papagaios e pipas eram o vôo do menino e do vento. E tinha um rio. E tinha o menino e o rio. Tinha magia e mistério beira-rio. Tinha fé e fantasia. Peia e rebeldia. Ela perguntou um menino assim resiste? Não estou bem certo se era uma vez um menino um lugar e um tempo. Bem poderia ser uma menina um lugar e um tempo. Uma menina azul que gostava de avental e ventania no vão da varanda. Uma menina que acendia palavras na tarde vazia em que seu olhar via e lia fábulas. Ela perguntou uma menina assim existe? Melhor que fosse era uma vez uma menina e um menino em lugar e tempo diferentes. Tinha e não tinha fadas e duendes. Bruxas não tinha. Certo dia o dia virou diamante e o seu brilho era tanto que apagou o lugar e o tempo. O tempo e o lugar dos meninos. A menina era azul e gostava de hortênsias. O menino talvez fosse amarelo pois gostava de girassóis. Ou era de ipês? Não importa. O que importa é que o lugar voltou para o seu lugar pois é da natureza dos lugares ficarem no lugar. Mas o tempo esse não pára e quis começar de novo o tempo todo. E outra vez era uma vez dois meninos que saíram pelo mundo em busca do tempo e do lugar em que tudo era uma vez. Os dois buscaram tanto que ficaram tontos. Encontraram todos os lugares no lugar mas o tempo era fugidio e escapulia por entre os dedos como areia fina. Pensavam que era presente e já era passado. A menina era maga e fez algumas magias. Transformou sapos sapientes em sábios e corujas benditas em ditas cujas. Além do mais não podia ver uma palavra solitária que logo lhe arrumava um par. Foi ela quem inventou as palavras compostas. Já o menino era metido a poeta rimava tudo com nada nadava ritmos e melodias em rios de versos. Diversas vezes não pontuava temendo pela liberdade das palavras. Lembrei que os dois gostavam de inventar nomes para o inominável. Todos os nomes que não existem foram eles que criaram. Falavam de gulodices e gostosuras... Comecei a me perder no enredo. Ela quis ajudar e meio dormindo perguntou se eles foram felizes para sempre. Eu que nem pensara num desfecho disse que talvez sim talvez não. Que era tudo uma questão de ponto de vista. Que era muito relativo. Que... Seus olhos iluminaram a noite e perdoaram minha falta de jeito para contar estória. Minha falta de prosa. Depois dormiu. Apaguei a luz e fiquei contado luas e estrelas que o abajur refletia no teto. A noite calma acalentava o sonho da menina rara.