prosa pra pirar

prosa pra pirar
prosa de poeta engasga até profeta

domingo, 19 de fevereiro de 2012

InvenSão VI

Ônibus Campus/Unir vindo para a cidade,numa sexta-feira.

Ele: Posso sentar aí?
Ela: Pode. Rola um papo que o ônibus é nosso. Que curso cê faz?
Ele: História. E você?
Ela: Letras.
Ele: Letras? Que onda! O que vocês aprendem no curso de letras? A fazer letras de forma ou letras mortas?
Ela: Nenhuma das duas. A ideia é ler e questionar criticamente a literatura, a gramática e a linguística.
Ele: Nossa, que sinistro! Posso dizer que é um curso crítico?
Ela: Não, seria redundante, pois críticos estão todos os cursos superiores públicos. Mas pode dizer que é um curso de crítica. E o que vocês estudam no curso de história? Estórias da Carochinha?
Ele: Não. Ou melhor, também. O grande lance do curso é problematizar a projeção da fala na história. Essa coisa do oral, tá ligada?
Ela: Tô. Já experimentei com o meu namorado. É uma loucura!
Ele: Não é nada disso, mina. A coisa é séria. Tem até um professor nosso que escreveu ser “a História oral, antes de tudo, perspectiva política, um achegar-se ao ser social, aos homens vivos, aos seus problemas, antes e como condição de uma reflexão, de uma práxis mais atuante, mas complexa e vasta”.
Ela: Caraca, moleque, a figura foi fundo, hein? Quem é a fera?
Ele: Na história oral, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.
Ela: Cara, você me impressionou com essa citação. Pois fique sabendo que um grande autor, que infelizmente não é nosso professor, escreveu que “A crítica não é uma ‘homenagem’ à verdade do passado, ou a verdade do ‘outro’, ela é a construção da inteligência do nosso tempo”.
Ele: Égua, mina, o cara é quente! Quem escreveu isso?
Ela: Na crítica, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.

Pausa de duas paradas.

Ele: Porra, o papo ficou cabeça demais, muito acadêmico, não é mesmo?... Mas mudando de assunto: um bequizinho de vez em quanto cê curte, né?
Ela; Não. Beque só back vocals ou flashback. Sou mais um vinho do que unzinho.
Ele: Nunca ninguém levou você ao tatuzão, para assistir um pôr-do-sol e dar uma bola?
Ela: Não. Nunca.
Ele: Que coisa! E balada, cê se amarra?
Ela: Só a “Balada do Esplanada”, do Oswald de Andrade, e a “Balada de um vagabundo”, do Cazuza. O resto é aluguel e perda de tempo.
Ele: Gata, tenho que confessar: tô pirando na sua. Cê é diferente pra cacete.
Ela: Demorou, hein? Só acho que você tá precisando praticar mais a oralidade... Desço aqui nessa parada. Tiau.
Ele: Ei mina, esqueci de perguntar: qual é o seu nome?
Ela: Em cantada mal dada, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.
Ele: E amanhã, na cantina, posso tentar de novo?
Ela: Não sem ler todinho o Manual de história oral. E depois, Mané, amanhã é sábado. Fui.
Ele: Meu nome não é Mané, é Lé, Lé Zinho. Égua da moleca!...

O ônibus dobrou rumo ao centro, carregado de interjeições e silêncios.

3 comentários:

  1. ...com uma prosa pirante ao lado, no assento 22 do ônibus sento a minha bunda e, no reflexo da floresta nos vidros oleosos e gordurentos há digitais anônimas que revogam uma identidade antes da próxima parada... esse Lé Z- é bastante aspirante nas letras da história moderna... "mais uma pérola magnífica do baú do Binho".

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  2. Concordo! "mais uma pérola magnífica do baú do Binho"

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