prosa pra pirar

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prosa de poeta engasga até profeta

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A MENINA DO SONHO (invenSão a dez dedos)


I
Na saída para a caminhada matinal, deu de cara com a moça que estava no seu sonho. Viu de relance a asa de borboleta voltejando ruflante em sua espádua de musa. Bilou na sua blusa leve a pintura da noite anterior diluindo-se nas cores pastéis da estampa. Quis dizer alguma frase que tocasse a menina do sonho. Lembrou a canção de Gil: “Hoje a menina do sonho não veio me acordar”. Pensou que seu caso era diferente. O real era o contrário. Então cantou: hoje a menina do sonho sim veio me acordar. A melodia ficou um “não” menor. Um “sim” maior. Não importava. Era ela, tinha certeza, rememorou seus olhos acesos na escuridão clara da lua. Lembrou da rua, da roupa que ela despia, enquanto as flores no jardim vizinho explodiam em êxtase de clorofila rosácea. Firmou o passo na direção da manhã, mas a memória não desgrudava do passado próximo. Ficou sem inspiração para continuar a cena e encerrou o parágrafo.

II

Minutos depois tentou novamente. As reminiscências piscavam feitas as luzes ainda acesas da cidade. Veio-lhe a imagem do beijo interrompido a meio caminho dos lábios. O casal que passou fugidio entre seus corpos. Depois ela olhando para a lua que quedava frente à alvorada inflexível. Sentiu seu corpo suspenso no fio de desejo que costurava seus instintos ao dela. Era ela, ele sabia, a menina do sonho, a moça da quimera noturna. A borboleta que volteara sobre e sob sua luz até o esgotamento gozoso. A fala de fada safa ecoando decibéis em sua caixa de ressonância cefálica, enviando comandos fálicos para seus atos falhos. Olhou para trás a tempo de ver o ponto final forjar o limite da frase. Faltou piração na trama. Mais um parágrafo de insatisfação.

III
Dias após, num sonho simbolista, a menina reapareceu em meio a nevoeiros intensos, arvoredos outonais e luas extáticas. Diáfana como as begônias ensandecidas pela escuridão ladina simulava penumbras e claros na noite, este algum lugar em que as definições pouco podem para exprimir a paisagem humana. Veio envolta na nudez com que a leveza veste as musas vaporosas e, súbito, o surpreendeu portando, entre outras coisas, vírgulas nos olhos, exclamações na boca, e interrogações nas orelhas. Alguém bate a porta antes do afago ansiado. O beijo se espatifa ao som da campainha. A menina some. A visita apaga a cena. O ponto de exclamação no fim do parágrafo é inevitável: cai como o raio que divide estranhas realidades!

IV
Sai a visita. Volta a menina. Agora apenas uma ideia forjada na ponta dos dedos que digitam a lembrança fugidia. A menina do sonho se materializa na virtualidade e navega o ciberespaço da solidão do homem. O mesmo outro homem saindo para a caminhada matinal que o levará ao encontro da mesma outra menina do sonho. Do outro mesmo sonho. A noção de indeterminação assalta o sujeito oculto na voz que conta. O ponto final sai sem fechar a porta entreaberta das reticências...

Um comentário:

  1. Olá, querido Menino da água doce. Aprovadíssimo o blog. O texto "A MENINA DO SONHO (invenSão a dez dedos", por exemplo, poeticamente "prosapirou" meu "cabeção"(hahahah!). Muito bacana! Tem música, cinema, literatura...Tem ARTE!Gracias, Binho. Parabéns!

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