prosa pra pirar

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prosa de poeta engasga até profeta

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A PIPIRA E O PAPIRO

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Poemas e canções são minhas sinas. As musas se multiplicam em palavras e a lavra de versos aumenta. O inverno é apenas um detalhe nesta manhã de sexta-feira. Os pombos passam batendo asas rentes a minha janela. Quase adivinho a delícia do vôo deles. Morar em apartamento tem muito de morar no ar. Mas é um vôo preso ao chão. É bem verdade que o verde dos quintais parece acenar pra gente. Pode ser que seja só viagem, mas acho que conheço o casal de sanhaço que mora no jambeiro da esquina. Pensando bem, acho que conheço também o casal de curió que (na)mora na copa da ingazeira do vizinho. Tem uma passarinha linda, uma tal de pipira, que me esnoba. Mas não ligo: canto, sempre que posso, uma canção dizendo a ela do meu amor. Sei de sua paixão por uma flor copo-de-leite, mas digo sempre a ela que sou mais eu. Ela diz que não fomos feitos um para o outro. Digo que ninguém foi feito para o outro e sapeco um solo de bico no seu lindo ouvido da pipira: ela pira e paira. Tem passarinha que é assim mesmo: avoada. Talvez chova até o fim do tarde. Talvez não. Fico pensando que a distância é um riso na boca do silêncio.

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Tudo na levada do Madeira: devagar e sempre. Os dias começam a ficar mais frios. Como diz o povo: é a friagem chegando, anunciando o fim da temporada de chuvas. Prenunciando a estiagem. Sei disso porque escuto os passarinhos do meu prédio conversando a respeito. A pipira linda do quintal do vizinho me segredou que os ocasos serão, doravante, mais lindos e variados. Ela sabe das coisas, mas ainda assim fico esperando por uma surpresa que me arrebate e me leve até a beira do rio. Poderia ser até ela, a pipira, a me levar em suas asas de luz. Pôr-do-sol me seduz.

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Os dias aqui parecem feitos de fantasia. É como se a natureza brincasse com nossa sensibilidade, indo de extremo a extremo da beleza sem ao menos piscar. Tem dias que a chuva ainda vem e nos toma de assalto nas biqueiras e nos beirais das casas. Tem dias que é o sol que brinca de inventar vitrais nas frestas e janelas da manhã. Tem dias que só a pipira (a lindinha que amo) é capaz de entender a natureza. Nada lhe pergunto, pois sei o quanto ela é pretensiosa sobre saber das coisas do mundo. Diria até que tem horas em que ela é arrogante. Mas, como já falei, não ligo: quem ama perdoa até a arrogância de uma pipira metida à besta. Quando canta, eu me desmancho todo e sou feliz como se ela me amasse. Porém, tem aquela fálica flor copo-de-leite que não sai da cena. Talvez a pipira só ame a si mesma. Flerta e se refestela com copo-de-leite e comigo. Dissimulada.

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Numas dessas manhãs em que as nuvens manhosam mansas, a pipira apareceu com uma tonalidade estranha no canto. Um pipipi meio papapá. Um larilari meio larilará. Saquei logo: estava disfarçando alguma coisa ou, talvez, querendo se desculpar pela pulada de muro (ou seria de galho?) com certo pardal imigrante. Fiz de conta que não era comigo. Lá embaixo, a copo-de-leite se fechou como uma ostra, deixando claro o sentido da palavra ostracismo. A pipira, sabendo que é poderosa com relação a nos dois, continuou com aquele lereleré amolante e artificial. Cantei quase em sua orelha um trip-hop que ela ojeriza. Ela continuou lá. Encostei um pouco a janela. E ela lá. Recitei um poema que ela odeia. E a danadinha lá. Larilari, larilará. Piripipi, parapapá. Até que ela apelou: mandou um solo de assobio, tecido da mais leve textura de ar, que misturava minha música preferida com a de copo-de-leite. A flor lá embaixo se abriu com tanta violência que quase se rasgou. Aqui em cima, escancarei a janela com tal força que por pouco não a arranquei. E ela ali, linda, arrepiada pela brisa doce do seu próprio canto. Mais narcísea que arrependida. E eu e a flor também ali, derretidões, pão com banha. Depois, a linda pipira sumiu em direção ao arvoredo, seguida de perto por três sanhaços pra lá de azuis. Ah, amada infiel e insaciável! Estava só testando nosso amor. Copo-de-leite ficou pê. Eu também.

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Falando em palavrosa, ela, a pipira, anda que é só conversa fiada. Depois daquele sumiço com os azuis (lembram?), fica passando de um lado para o outro, na minha janela, falando (cantando?) pelos cotovelos (asas?). Pego as frases aos pedaços: "você é meu poeta preferido... nunca mais cantou minha canção... tem umas penas novas que quero lhe mostrar...". Sei que é apelação. Quando ela tem culpa no cartório fica desse jeito: caótica e apelona. Assovio, despistando. Só volto a falar com ela depois do verão: está decidido! Eu conheço o seu cio na estiagem. Não vou suportar mais um verão de traições e travessuras. No inverno, converso direito com a lindinha. Ela que me aguarde. Fiquei sabendo que copo-de-leite a perdoou. Então, ela que agüente deslizes e despistes dessa insatisfeita pipira. Ela que pire. Olho bem distante e aposto que vejo o sem-fim do mar.

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A poesia que fiz foi pródiga com a pipira. Vislumbrou versos de findar o fôlego, inquietarem a mente. Pensa que ela ligou? Fez que não fosse com ela. Desfaçatez e insensatez. Nem aí para nada. Quase a mandei se... Mas o amor, que a tudo perdoa, declinou da agressão. Ela agora anda de onda com um chico-preto metido a bosta, que passa as manhãs pulando na cabeça de um mourão. Ela acha isso lindo. Não vejo graça. Nem a copo-de-leite. Aliás, estou começando a me cansar das perfídias pirantes da pipira. Égua da passarinha insaciável! Mas, não posso julgá-la, sofro de mal igual. Estou apaixonado por uma sabiá que veio morar no telhado ao lado. A loura é tão lindinha que enlouquece qualquer cantor. A pipira desconfia, mas se faz de gostosa. É típico dela. Deixa ver o que vai dar esse novo affair.

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A sábia se mudou e a pipira voltou cantando "quero que você me aqueça neste inverno". Tentei olhar em seus olhos para ver se podia sentir firmeza nas suas palavras. Ela despistou: olhou para um quadro do Miró na parede, depois para a capa do Let it be dos Beatles em cima da mesa e, finalmente, olhou para a infinitude azul do céu lá fora. Não mudou nada: continua dissimulada como sempre. Olhei pela janela para ver se ela estava sozinha e ainda deu tempo de ver os dois curiós que lhe faziam companhia se escondendo por detrás do galho de ingazeira. Ela sentiu que eu tinha sacado a tramóia e, num golpe de puro reflexo canalha, trinou o seu solo de bico que mais amo. Tenho que confessar: chorei muito durante a execução! Quando terminou o solo vi que a bandida me espreitava com os olhinhos semi-cerrados. Puro charme. Coloquei um disco do Sigur rós (sei que ela odeia essa banda) bem alto, só para ver se ela desistia do teatro. Ela pousou no meu ombro e entoou inebriantes e líricas letras de amor. Estou tonto até agora. Ela sabe como me fazer abrir mão dos meus princípios. Vou ter que conviver com ela (mais os dois curiós) durante esse inverno "e que tudo mais vá pro inferno". Quando seu bico tocou meu lábios, antes de partir (com os dois bandidinhos) rumo à imensidão celestial, saquei que estou condenado a amá-la e odiá-la pelo resto da vida. Tenho esperança: quem sabe no verão as coisas mudem? Será?...

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Nem bem o ano novo pulou o muro do tempo e ela, a pipira bela, já tomou posse da minha janela. A sedução é grande e eu temo não sobreviver a mais esse capítulo de amor. Agora deu para só cantar os solos seus que mais gosto. Tenho chorado e rido de emoção: passeio embriagado pelo vão da casa, palmilhando a solidão do inverno. Ela me espreita pelos vãos das janelas e portas. Sabe do meu amor e me fere para saber até onde ele vai. Tento reagir, mas sou fraco diante da sua leveza de musa. Tenho cá pra mim que o inverno será um inferno em flor. Lá fora ela me ensina a voar. Cá dentro morro de medo de altura. Ela diz por aí que me ama, mas o que tenho são lembranças esparsas de sua afeição ufana. E nessa pisada, os dias passam, a chuva passa, a uva passa, só a sede da passarinha não cessa. O lusco-fusco nos olhos do crepúsculo acende sua chama interior e incendeia a cena na boca-da-noite. Ela não tem ocaso. Nem arrebol. Em assim sendo, resguardo-me.

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Naquela manhã de novembro ela apareceu com suas coisas debaixo das asas pedindo pra voltar. Olhei em seus olhos e vi algo que nunca tinha visto: ela sente medo de amar! Vi isso no seu canto de sempre. Em seu vôo de sempre. E eu que continuamente fora tão atento aos seus gestos não percebera que assédio a sério a deixava assustada. Falei assim: pipirinha, minha linda, tenha medo não. Sou o que sôo, mas não vôo só. Entre limites e deslimites não conheço a linha que define cada um desses horizontes. É de minha natureza poética amar ininterruptamente e com intensidade. Sei de arcanjos no jardim e de borboletas nos casulos. Sei de cobras e lagartos na língua do mundo. Ela me ouviu calada como só as pipiras lindas sabem ouvir. Sorriu quando eu confessei que sei pecar por excesso mais que por omissão. Olhou nos meus olhos como quem se vai e foi em busca de algo menos divino que um poeta profano. Ainda sorriu quando ensaiei os primeiros acordes da nossa canção. Porém, cismou dizer não ao que mais queria e a lágrima que rolou de seus olhos se esfacelou nos senões do sim. Chamei o seu nome, mas nem o eco trouxe a resposta. Pousada na janela a pena pênsil ensinava o adeus.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A MENINA DO SONHO (invenSão a dez dedos)


I
Na saída para a caminhada matinal, deu de cara com a moça que estava no seu sonho. Viu de relance a asa de borboleta voltejando ruflante em sua espádua de musa. Bilou na sua blusa leve a pintura da noite anterior diluindo-se nas cores pastéis da estampa. Quis dizer alguma frase que tocasse a menina do sonho. Lembrou a canção de Gil: “Hoje a menina do sonho não veio me acordar”. Pensou que seu caso era diferente. O real era o contrário. Então cantou: hoje a menina do sonho sim veio me acordar. A melodia ficou um “não” menor. Um “sim” maior. Não importava. Era ela, tinha certeza, rememorou seus olhos acesos na escuridão clara da lua. Lembrou da rua, da roupa que ela despia, enquanto as flores no jardim vizinho explodiam em êxtase de clorofila rosácea. Firmou o passo na direção da manhã, mas a memória não desgrudava do passado próximo. Ficou sem inspiração para continuar a cena e encerrou o parágrafo.

II

Minutos depois tentou novamente. As reminiscências piscavam feitas as luzes ainda acesas da cidade. Veio-lhe a imagem do beijo interrompido a meio caminho dos lábios. O casal que passou fugidio entre seus corpos. Depois ela olhando para a lua que quedava frente à alvorada inflexível. Sentiu seu corpo suspenso no fio de desejo que costurava seus instintos ao dela. Era ela, ele sabia, a menina do sonho, a moça da quimera noturna. A borboleta que volteara sobre e sob sua luz até o esgotamento gozoso. A fala de fada safa ecoando decibéis em sua caixa de ressonância cefálica, enviando comandos fálicos para seus atos falhos. Olhou para trás a tempo de ver o ponto final forjar o limite da frase. Faltou piração na trama. Mais um parágrafo de insatisfação.

III
Dias após, num sonho simbolista, a menina reapareceu em meio a nevoeiros intensos, arvoredos outonais e luas extáticas. Diáfana como as begônias ensandecidas pela escuridão ladina simulava penumbras e claros na noite, este algum lugar em que as definições pouco podem para exprimir a paisagem humana. Veio envolta na nudez com que a leveza veste as musas vaporosas e, súbito, o surpreendeu portando, entre outras coisas, vírgulas nos olhos, exclamações na boca, e interrogações nas orelhas. Alguém bate a porta antes do afago ansiado. O beijo se espatifa ao som da campainha. A menina some. A visita apaga a cena. O ponto de exclamação no fim do parágrafo é inevitável: cai como o raio que divide estranhas realidades!

IV
Sai a visita. Volta a menina. Agora apenas uma ideia forjada na ponta dos dedos que digitam a lembrança fugidia. A menina do sonho se materializa na virtualidade e navega o ciberespaço da solidão do homem. O mesmo outro homem saindo para a caminhada matinal que o levará ao encontro da mesma outra menina do sonho. Do outro mesmo sonho. A noção de indeterminação assalta o sujeito oculto na voz que conta. O ponto final sai sem fechar a porta entreaberta das reticências...

PAI SEM PROSA

Ela perguntou papai você sabe contar uma estória como quem pergunta papai você pode acender a luz. Disse que sabia e que era uma vez um menino um lugar e um tempo. Tinha passarinho igarapé e muita mata. Tinha baladeira peteca e pião. Casqueta e curica sei que tinha. Cerol e linha branca tinha. E era manhã tarde e noite. Papagaios e pipas eram o vôo do menino e do vento. E tinha um rio. E tinha o menino e o rio. Tinha magia e mistério beira-rio. Tinha fé e fantasia. Peia e rebeldia. Ela perguntou um menino assim resiste? Não estou bem certo se era uma vez um menino um lugar e um tempo. Bem poderia ser uma menina um lugar e um tempo. Uma menina azul que gostava de avental e ventania no vão da varanda. Uma menina que acendia palavras na tarde vazia em que seu olhar via e lia fábulas. Ela perguntou uma menina assim existe? Melhor que fosse era uma vez uma menina e um menino em lugar e tempo diferentes. Tinha e não tinha fadas e duendes. Bruxas não tinha. Certo dia o dia virou diamante e o seu brilho era tanto que apagou o lugar e o tempo. O tempo e o lugar dos meninos. A menina era azul e gostava de hortênsias. O menino talvez fosse amarelo pois gostava de girassóis. Ou era de ipês? Não importa. O que importa é que o lugar voltou para o seu lugar pois é da natureza dos lugares ficarem no lugar. Mas o tempo esse não pára e quis começar de novo o tempo todo. E outra vez era uma vez dois meninos que saíram pelo mundo em busca do tempo e do lugar em que tudo era uma vez. Os dois buscaram tanto que ficaram tontos. Encontraram todos os lugares no lugar mas o tempo era fugidio e escapulia por entre os dedos como areia fina. Pensavam que era presente e já era passado. A menina era maga e fez algumas magias. Transformou sapos sapientes em sábios e corujas benditas em ditas cujas. Além do mais não podia ver uma palavra solitária que logo lhe arrumava um par. Foi ela quem inventou as palavras compostas. Já o menino era metido a poeta rimava tudo com nada nadava ritmos e melodias em rios de versos. Diversas vezes não pontuava temendo pela liberdade das palavras. Lembrei que os dois gostavam de inventar nomes para o inominável. Todos os nomes que não existem foram eles que criaram. Falavam de gulodices e gostosuras... Comecei a me perder no enredo. Ela quis ajudar e meio dormindo perguntou se eles foram felizes para sempre. Eu que nem pensara num desfecho disse que talvez sim talvez não. Que era tudo uma questão de ponto de vista. Que era muito relativo. Que... Seus olhos iluminaram a noite e perdoaram minha falta de jeito para contar estória. Minha falta de prosa. Depois dormiu. Apaguei a luz e fiquei contado luas e estrelas que o abajur refletia no teto. A noite calma acalentava o sonho da menina rara.