prosa pra pirar

prosa pra pirar
prosa de poeta engasga até profeta

quinta-feira, 26 de abril de 2012

entrudo



        A manhã molhada quase me deixa triste. Raios de sol em riste, não virão iluminá-la de cromos as ninfas ou as musas. Não virão, o azul lazuli do infinito e o branco indeciso das nuvens, atormentá-la de beleza. O vento frio, farejando as frestas da casa, anuncia a liquidez e a frialdade do dia. A manhã molhada quase me deixa triste. Não fosse esta memória futura saltitando lembranças presentes. Não fosse esta cena passada, aprisionada a certos lapsos e reminiscências do quando. A quase tristeza desta manhã cedo é seda tecida pelos dedos ágeis das águas. A chuva é o charme desta quase tristeza. Nenhuma lágrima logrou alagar os olhos. Ilhas que são, os olhos enxergam nadas lá fora. Exceto, talvez, a umidade da manhã, mais dentro que fora deste agora.

O silêncio da alvorada é cortado, timidamente, por um ou outro pássaro matinal. O canto não tem o calor de sempre, apenas a melodia se repete – tema tautológico, ad infinitum. Um sanhaço aqui, um bem-te-vi acolá, o tema se desenvolve de silêncio em silêncio, como num concerto minimalista. O silêncio soa por fora e por dentro da manhã molhada. Mesmo o poema que se escuta no dial do cosmos é sinal de silêncio. O cio e o ócio na voz que tece o verso somam-se ao silêncio celestial desta manhã, em que, quase triste, invento ventos nas frestas.

A manhã molhada quase me deixa triste. A insânia e a insônia alertaram a visão periférica para esta quase tristeza desenhada na janela. O não-sol segue exposto no plúmbeo da abóbada. Sei disso porque me segredaram as nuvens. Os galos, esquecidos da lição cabralina, não tecem manhã nenhuma. Nem mesmo esta molhada e silenciosa. É provável estejam quão triste encontro-me. Por isso prosa e não canto. Por isso o mesmo espanto nos galos e em mim. A manhã molhada quase nos deixa tristes.

Mas a manhã segue molhada como se feita de igapós e não de terras firmes. Feita de valas e não de vales. Os últimos pingos desgastam-se rumo ao esgoto gótico desta cidade fágica, indiferentes à manhã molhada que me deixa quase triste, como se acreditassem ser chiste a tristeza que inventa ventos nas frestas desta memória futura. Vou com eles por nada. Em tudo, entrudo.       

quarta-feira, 18 de abril de 2012

InvenSão V

O fato de flutuar pelo quarto com a leveza das salamandras e sentir o espírito impregnado de essência fêmea e felina, causou-lhe certo estranhamento. Ao caminhar por entre os móveis, requebrou mais que de costume – o balancê nas cadeiras incomodou sua memória masculina. Quando tentou cantar para, quem sabe, espantar aquela estranha sensação, quase teve uma síncope: a voz que saiu de sua garganta era um misto de Tetê Espíndola e Barbra Streisand. Pensou em “Escrito nas estrelas” e “Superman”, por um istmo de segundo, e suspirou saudoso.

Ocorreu-lhe pedir ajuda, porém, o som que saiu de sua boca era tão melódico e melífluo que achou impossível gritar com tal voz. Desesperado, tentou sumir da cena, mas tropeçou nos saltos e foi aos braços do amante que o acolheu curioso e apaixonado.

O arrepio que percorreu Lé Zinho é inenarrável. Correu ao espelho para ver o que havia acontecido e deparou com sua metamorfose no aço. Viu, estarrecido, que era uma mulher deslumbrante e bela. Tão bela que o fazia se sentir orgulhoso. “Deus, que loucura! Agora sou uma princesa!”, pensou. “Ainda ontem, antes de dormir, não fizera a barba? Que viagem era aquela?”, resmungou. O cheiro que o parceiro deu em seu cangote o resgatou do devaneio.

Os beijos arrebatadores não o assustaram tanto quanto a maneira como foi jogado na cama e possuído pela ternura e desejo do amante. Apesar de continuar pensando como homem, achava aquilo tudo novo, lindo e bom. Ser mulher começava a lhe parecer deliciosamente desafiador.

Por outro lado, algo dentro dele resistia, pensando a coisa como um pesadelo do qual a qualquer momento acordaria. Esse momento, porém, parecia ser retardado pelo prazer que começava a sentir com as mudanças. Lé Zinho estava em crise com seu passado e presente sexual: uma crise de gênero. Essa crise promoveu um súbito apagamento da memória masculina e ele passou a acreditar que sempre fora mulher. Sim, uma linda mulher que se chamava simplesmente Lé.

A partir de então, passou a viver como uma fêmea de estranha e atraente natureza. Além de uma vida cultural movimentada, talvez uma memória inconsciente do passado esquecido, levava a cabo uma agenda de parceiros e amantes muito intensa e diversificada. Vivia feliz em meio aos poemas que escrevia ao acaso, em folhas soltas e manchadas de vinho (ou seria de sangue?), e se divertia rolando em lençóis de seda dos quais evolavam perfumes profanos e púrpuros. Caminhava nua pela casa e recitava Ana Cristina César, Alice Ruiz, Ledusha e Clarice Lispector. Às vezes, meditava sobre o que comer à noite: um poeta ou um crítico? Ria. Os versos vinham entremeados de devaneios e desejos seus. Ria o riso das saciadas.

Numa certa manhã de primavera, afetada pelos efeitos florais da estação, Lé acordou sentindo aquele algo que, tempos atrás, resistira dentro de Lé Zinho e que subitamente havia sido apagado de sua memória. Reflexo incondicional, levou a mão à braguilha como quem vai coçar o antigo sexo. Ficou por demais feliz ao sentir o calor úmido, a um só tempo mágico e macio, dos lábios violáceos envolvendo seus dedos. Sentia-os abertos em flor. Na primavera as flores são sempre lindas. E Lé, como toda mulher, gostava de flores. Fez um buquê de palavras flores e tatuou em seu corpo. Ao redor do umbigo.