prosa pra pirar

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prosa de poeta engasga até profeta

quarta-feira, 18 de abril de 2012

InvenSão V

O fato de flutuar pelo quarto com a leveza das salamandras e sentir o espírito impregnado de essência fêmea e felina, causou-lhe certo estranhamento. Ao caminhar por entre os móveis, requebrou mais que de costume – o balancê nas cadeiras incomodou sua memória masculina. Quando tentou cantar para, quem sabe, espantar aquela estranha sensação, quase teve uma síncope: a voz que saiu de sua garganta era um misto de Tetê Espíndola e Barbra Streisand. Pensou em “Escrito nas estrelas” e “Superman”, por um istmo de segundo, e suspirou saudoso.

Ocorreu-lhe pedir ajuda, porém, o som que saiu de sua boca era tão melódico e melífluo que achou impossível gritar com tal voz. Desesperado, tentou sumir da cena, mas tropeçou nos saltos e foi aos braços do amante que o acolheu curioso e apaixonado.

O arrepio que percorreu Lé Zinho é inenarrável. Correu ao espelho para ver o que havia acontecido e deparou com sua metamorfose no aço. Viu, estarrecido, que era uma mulher deslumbrante e bela. Tão bela que o fazia se sentir orgulhoso. “Deus, que loucura! Agora sou uma princesa!”, pensou. “Ainda ontem, antes de dormir, não fizera a barba? Que viagem era aquela?”, resmungou. O cheiro que o parceiro deu em seu cangote o resgatou do devaneio.

Os beijos arrebatadores não o assustaram tanto quanto a maneira como foi jogado na cama e possuído pela ternura e desejo do amante. Apesar de continuar pensando como homem, achava aquilo tudo novo, lindo e bom. Ser mulher começava a lhe parecer deliciosamente desafiador.

Por outro lado, algo dentro dele resistia, pensando a coisa como um pesadelo do qual a qualquer momento acordaria. Esse momento, porém, parecia ser retardado pelo prazer que começava a sentir com as mudanças. Lé Zinho estava em crise com seu passado e presente sexual: uma crise de gênero. Essa crise promoveu um súbito apagamento da memória masculina e ele passou a acreditar que sempre fora mulher. Sim, uma linda mulher que se chamava simplesmente Lé.

A partir de então, passou a viver como uma fêmea de estranha e atraente natureza. Além de uma vida cultural movimentada, talvez uma memória inconsciente do passado esquecido, levava a cabo uma agenda de parceiros e amantes muito intensa e diversificada. Vivia feliz em meio aos poemas que escrevia ao acaso, em folhas soltas e manchadas de vinho (ou seria de sangue?), e se divertia rolando em lençóis de seda dos quais evolavam perfumes profanos e púrpuros. Caminhava nua pela casa e recitava Ana Cristina César, Alice Ruiz, Ledusha e Clarice Lispector. Às vezes, meditava sobre o que comer à noite: um poeta ou um crítico? Ria. Os versos vinham entremeados de devaneios e desejos seus. Ria o riso das saciadas.

Numa certa manhã de primavera, afetada pelos efeitos florais da estação, Lé acordou sentindo aquele algo que, tempos atrás, resistira dentro de Lé Zinho e que subitamente havia sido apagado de sua memória. Reflexo incondicional, levou a mão à braguilha como quem vai coçar o antigo sexo. Ficou por demais feliz ao sentir o calor úmido, a um só tempo mágico e macio, dos lábios violáceos envolvendo seus dedos. Sentia-os abertos em flor. Na primavera as flores são sempre lindas. E Lé, como toda mulher, gostava de flores. Fez um buquê de palavras flores e tatuou em seu corpo. Ao redor do umbigo.

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