Fim
de tarde de domingo, compasso de espera da noite que se anunciou palavrosa, um possível
tira-e-bota de máscaras desenha a desfaçatez da linguagem poética. Verso ou
prosa? Ser ou sósia? A foz ou a fonte? Mestiçagem natural e saudável de
escritores descrentes dos limites do gênero, que constroem pontes na
intersecção do contar e do cantar, não-lugar em que fortalecemos nossos poetares. A poesia simula ser um
pensamento em ação. Mas, às vezes, é um estado de espírito. Poesia não se diz.
Sinto-me
confortável solfejando em meio a seres sonoros, atores autores, a voz em mim se
molda nos zunzunzuns urbanos das falas, vou buscar um elo esquecido em algum
lugar da memória e trago para a luz, assim como para a sombra, as palavras
cantantes e contantes com as quais me relaciono seriamente. Às vezes, cegamente,
as possuo. A palavra que me cabe é a que me percebe cedo ou tarde. É o sentido
que evola, é o som que silencia, é o verso que destrava. Incestuoso gesto. Incestuoso
e incerto.
A
palavra que me habita não me noticia. Nem me denuncia. Não há via que nos aproxime,
nem havia. Há a via que havia a muito, quando o tempo ainda se fazia. A via que
há muito tempo ia. A verdade é que nunca vi a via. Só a ouvia. Poucas vezes flagrei
nua a poesia que veio comigo morar. Sempre coberta de rendas e garatujas, de
arabesco e rabisco. Nem vi sua natureza crua. Sua fenda de sons. Seus mamilos
de sentidos. Só sei do que ela não é ou seria.
A
máscara é a palavra, ego posto à prova, é a prosa do som com o sentido, é o que
sussurramos detrás do ouvido das coisas. Máscaras verbais. O ainda e mesmo
poeta fingidor. Não me acende ou excede saber o que é poesia, mas me eleva inventar
poemas nos dias de chuva, mesmo que faça sol a tarde e que à noite a lua se
embriague de sereno. Não sei da crise do
verso nem dos despropósitos da prosa. Saio pouco a prosear com as palavras. Elas
é que me freqüentam. Elas sim sabem do blefe do poeta, do disfarce da poesia e
do colapso do poema. A palavra é nosso alimento e o pensamento nossa casa. A
poesia é asa. A asa que sempre ameaça partir por escondermos as respostas sobre
a origem do verso que rabiscamos na carne.
Não
me arriscaria dizer dos mitos que moram nas e por detrás das máscaras poéticas.
Todos os eus todos os tus, arrastam correntes à sombra assombrada de seus
duplos, reflexo animal de nossos instintos inventivos. Nem míticos nem
místicos, apenas amortecidos no transcender aos outros “nós” que nos habitam.
Cada máscara uma sentença poética. Cada poética uma maneira encontrada para
dizer o já dito e reprisado na fricção dos signos. Dizer de forma sempre
remoçada o aço do espelho do recriado verso remoto. Não ouso dizer que poema é
o ato que permite a poesia. Mas poesia e poema ocasionam poetas, vasos falantes
pelos cotovelos. Seres sussurrantes pelas esquinas das frases em orações intermináveis.
Não.
Nada sei dizer do que pode diferenciar a poesia da máscara. Pessoa nos ensinou
que podemos ser pessoas. Múltiplos seres nos compõem. Podemos soar em
conformidade com a hora: pode ser neste instante ou, quem sabe, agora. A
palavra vem e leva a larva do discurso que se desenha ao contacto com o mundo.
A palavra, enquanto desenho é o mapa do mundo. Não o mundo do poeta ou o mundo
do leitor ou ouvinte. Mas o mundo que se renova a cada silaba ou signo pousado
no verso.
Sim.
Não vale à pena revelar o nome oculto da poesia. Seria uma heresia, uma
blasfêmia, um carma que se carregaria pela vida afora. A magia se oculta e a mágica
se revela. O milagre sem o nome do santo. Retirada todas as máscaras resta ao
poeta ficar de cara. Escancara o sorriso no rosto que desconhece. As lágrimas
se retêm entre o susto e o silêncio que o estranhamento opera. O poeta nada
sabe das passadas da poesia. O poema
é o não-lugar em que estes entes se encontram para o nadismo diário. Ócio, cio
e sensação. Um não-fazer produtivo.
Estranho
domingo em que dizer o indizível foi o que manteve o nível do rio e a revoada
das gaivotas. O indizível como forma de significar. Degustei a última palavra
num silêncio coletivo, inventado de improviso, sem que nada pudesse ascender a
sentido. Ficamos, eu e meus amigos, sentados à mesa, colados e calados, salivando
respostas a perguntas que juntos, lançamos na tarde. Arde um solo de grilo lá
fora. Aqui dentro, meu pensamento espavorido se quebra.