prosa pra pirar

prosa pra pirar
prosa de poeta engasga até profeta

terça-feira, 22 de abril de 2014

InvenSão


Três dias de rock pesado, depois de tudo um muito, a alma e corpo sujos de prazeres, Lé Zinho fica sabendo, na página inicial do google, que é o 117º aniversário de Pixinguinha: o bom e velho Pixinga. Resolve limpar sua alma com a música do mestre e de seus contemporâneos. Separa os Noel Rosa, Cartola, Nelson Sargento, K-Ximbinho, Aracy de Almeida, Donga e outros que vai lembrando enquanto uma leve réstia de perceptibilidade ainda permite. O corpo pesado pensa em curar sambando, mas o equilíbrio saiu junto com a lucidez e foram dar umas bandas por aí.
Lé separa os bolachões que mais ouve e, à lá Raul Seixas, coloca para rodar no seu pick-up garrard gradiente e arregaça no volume. Vai à geladeira e abre uma caixinha de breja para reiniciar os trabalhos. Passa a mão no biódromo e só encontra uma biata arrependida. Faz o que pode. Quando volta à sala o lado A do Melhor do Pixinguinha havia acabado. Resolve ouvir o Noel. “Palpite infeliz” e “A dama do cabaré” tocam uma após a outra. Quase goza de tanto prazer e fruição. Lembra umas e outras maluquetes. Umas fulanas do babado. A mente embotada, não se dá conta direito das coisas que acontecem na vizinhança. Ouve um burburinho que pensa ser de festa. Coloca o Donga e ouve algumas vezes a música “Pelo telefone”. Canta a parte que mais gosta aos berros:
O peru me disse
Se o morcego visse
Não fazer tolice
Que eu então saísse
Dessa esquisitice
De disse-não-disse
O burburinho aumenta e Lé resolve ir ver, da janela, do que se trata. Ao abri-la a brisa que entra traz consigo uma bala perdida que o acerta em cheio. Enquanto seu corpo ensandecido cai em câmera lenta, Lé Zinho, ainda insiste em lembrar o refrão do samba. Vê no arrebol os olhos da mulher que nunca amou.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Desdissência



Fim de tarde de domingo, compasso de espera da noite que se anunciou palavrosa, um possível tira-e-bota de máscaras desenha a desfaçatez da linguagem poética. Verso ou prosa? Ser ou sósia? A foz ou a fonte? Mestiçagem natural e saudável de escritores descrentes dos limites do gênero, que constroem pontes na intersecção do contar e do cantar, não-lugar em que fortalecemos nossos poetares. A poesia simula ser um pensamento em ação. Mas, às vezes, é um estado de espírito. Poesia não se diz.
Sinto-me confortável solfejando em meio a seres sonoros, atores autores, a voz em mim se molda nos zunzunzuns urbanos das falas, vou buscar um elo esquecido em algum lugar da memória e trago para a luz, assim como para a sombra, as palavras cantantes e contantes com as quais me relaciono seriamente. Às vezes, cegamente, as possuo. A palavra que me cabe é a que me percebe cedo ou tarde. É o sentido que evola, é o som que silencia, é o verso que destrava. Incestuoso gesto. Incestuoso e incerto.
A palavra que me habita não me noticia. Nem me denuncia. Não há via que nos aproxime, nem havia. Há a via que havia a muito, quando o tempo ainda se fazia. A via que há muito tempo ia. A verdade é que nunca vi a via. Só a ouvia. Poucas vezes flagrei nua a poesia que veio comigo morar. Sempre coberta de rendas e garatujas, de arabesco e rabisco. Nem vi sua natureza crua. Sua fenda de sons. Seus mamilos de sentidos. Só sei do que ela não é ou seria.
A máscara é a palavra, ego posto à prova, é a prosa do som com o sentido, é o que sussurramos detrás do ouvido das coisas. Máscaras verbais. O ainda e mesmo poeta fingidor. Não me acende ou excede saber o que é poesia, mas me eleva inventar poemas nos dias de chuva, mesmo que faça sol a tarde e que à noite a lua se embriague de sereno.  Não sei da crise do verso nem dos despropósitos da prosa. Saio pouco a prosear com as palavras. Elas é que me freqüentam. Elas sim sabem do blefe do poeta, do disfarce da poesia e do colapso do poema. A palavra é nosso alimento e o pensamento nossa casa. A poesia é asa. A asa que sempre ameaça partir por escondermos as respostas sobre a origem do verso que rabiscamos na carne. 
Não me arriscaria dizer dos mitos que moram nas e por detrás das máscaras poéticas. Todos os eus todos os tus, arrastam correntes à sombra assombrada de seus duplos, reflexo animal de nossos instintos inventivos. Nem míticos nem místicos, apenas amortecidos no transcender aos outros “nós” que nos habitam. Cada máscara uma sentença poética. Cada poética uma maneira encontrada para dizer o já dito e reprisado na fricção dos signos. Dizer de forma sempre remoçada o aço do espelho do recriado verso remoto. Não ouso dizer que poema é o ato que permite a poesia. Mas poesia e poema ocasionam poetas, vasos falantes pelos cotovelos. Seres sussurrantes pelas esquinas das frases em orações intermináveis.
Não. Nada sei dizer do que pode diferenciar a poesia da máscara. Pessoa nos ensinou que podemos ser pessoas. Múltiplos seres nos compõem. Podemos soar em conformidade com a hora: pode ser neste instante ou, quem sabe, agora. A palavra vem e leva a larva do discurso que se desenha ao contacto com o mundo. A palavra, enquanto desenho é o mapa do mundo. Não o mundo do poeta ou o mundo do leitor ou ouvinte. Mas o mundo que se renova a cada silaba ou signo pousado no verso.
Sim. Não vale à pena revelar o nome oculto da poesia. Seria uma heresia, uma blasfêmia, um carma que se carregaria pela vida afora. A magia se oculta e a mágica se revela. O milagre sem o nome do santo. Retirada todas as máscaras resta ao poeta ficar de cara. Escancara o sorriso no rosto que desconhece. As lágrimas se retêm entre o susto e o silêncio que o estranhamento opera. O poeta nada sabe das passadas da poesia. O poema é o não-lugar em que estes entes se encontram para o nadismo diário. Ócio, cio e sensação. Um não-fazer produtivo.

Estranho domingo em que dizer o indizível foi o que manteve o nível do rio e a revoada das gaivotas. O indizível como forma de significar. Degustei a última palavra num silêncio coletivo, inventado de improviso, sem que nada pudesse ascender a sentido. Ficamos, eu e meus amigos, sentados à mesa, colados e calados, salivando respostas a perguntas que juntos, lançamos na tarde. Arde um solo de grilo lá fora. Aqui dentro, meu pensamento espavorido se quebra.