PROSAPRAPIRAR
FALAÇÃO FIADA DE FIM DE FARRA
prosa pra pirar
terça-feira, 22 de abril de 2014
InvenSão
terça-feira, 8 de abril de 2014
Desdissência
quinta-feira, 26 de abril de 2012
entrudo
A manhã molhada quase me deixa triste. Raios de sol em riste, não virão iluminá-la de cromos as ninfas ou as musas. Não virão, o azul lazuli do infinito e o branco indeciso das nuvens, atormentá-la de beleza. O vento frio, farejando as frestas da casa, anuncia a liquidez e a frialdade do dia. A manhã molhada quase me deixa triste. Não fosse esta memória futura saltitando lembranças presentes. Não fosse esta cena passada, aprisionada a certos lapsos e reminiscências do quando. A quase tristeza desta manhã cedo é seda tecida pelos dedos ágeis das águas. A chuva é o charme desta quase tristeza. Nenhuma lágrima logrou alagar os olhos. Ilhas que são, os olhos enxergam nadas lá fora. Exceto, talvez, a umidade da manhã, mais dentro que fora deste agora.
quarta-feira, 18 de abril de 2012
InvenSão V
O fato de flutuar pelo quarto com a leveza das salamandras e sentir o espírito impregnado de essência fêmea e felina, causou-lhe certo estranhamento. Ao caminhar por entre os móveis, requebrou mais que de costume – o balancê nas cadeiras incomodou sua memória masculina. Quando tentou cantar para, quem sabe, espantar aquela estranha sensação, quase teve uma síncope: a voz que saiu de sua garganta era um misto de Tetê Espíndola e Barbra Streisand. Pensou em “Escrito nas estrelas” e “Superman”, por um istmo de segundo, e suspirou saudoso.
Ocorreu-lhe pedir ajuda, porém, o som que saiu de sua boca era tão melódico e melífluo que achou impossível gritar com tal voz. Desesperado, tentou sumir da cena, mas tropeçou nos saltos e foi aos braços do amante que o acolheu curioso e apaixonado.
O arrepio que percorreu Lé Zinho é inenarrável. Correu ao espelho para ver o que havia acontecido e deparou com sua metamorfose no aço. Viu, estarrecido, que era uma mulher deslumbrante e bela. Tão bela que o fazia se sentir orgulhoso. “Deus, que loucura! Agora sou uma princesa!”, pensou. “Ainda ontem, antes de dormir, não fizera a barba? Que viagem era aquela?”, resmungou. O cheiro que o parceiro deu em seu cangote o resgatou do devaneio.
Os beijos arrebatadores não o assustaram tanto quanto a maneira como foi jogado na cama e possuído pela ternura e desejo do amante. Apesar de continuar pensando como homem, achava aquilo tudo novo, lindo e bom. Ser mulher começava a lhe parecer deliciosamente desafiador.
Por outro lado, algo dentro dele resistia, pensando a coisa como um pesadelo do qual a qualquer momento acordaria. Esse momento, porém, parecia ser retardado pelo prazer que começava a sentir com as mudanças. Lé Zinho estava em crise com seu passado e presente sexual: uma crise de gênero. Essa crise promoveu um súbito apagamento da memória masculina e ele passou a acreditar que sempre fora mulher. Sim, uma linda mulher que se chamava simplesmente Lé.
A partir de então, passou a viver como uma fêmea de estranha e atraente natureza. Além de uma vida cultural movimentada, talvez uma memória inconsciente do passado esquecido, levava a cabo uma agenda de parceiros e amantes muito intensa e diversificada. Vivia feliz em meio aos poemas que escrevia ao acaso, em folhas soltas e manchadas de vinho (ou seria de sangue?), e se divertia rolando em lençóis de seda dos quais evolavam perfumes profanos e púrpuros. Caminhava nua pela casa e recitava Ana Cristina César, Alice Ruiz, Ledusha e Clarice Lispector. Às vezes, meditava sobre o que comer à noite: um poeta ou um crítico? Ria. Os versos vinham entremeados de devaneios e desejos seus. Ria o riso das saciadas.
Numa certa manhã de primavera, afetada pelos efeitos florais da estação, Lé acordou sentindo aquele algo que, tempos atrás, resistira dentro de Lé Zinho e que subitamente havia sido apagado de sua memória. Reflexo incondicional, levou a mão à braguilha como quem vai coçar o antigo sexo. Ficou por demais feliz ao sentir o calor úmido, a um só tempo mágico e macio, dos lábios violáceos envolvendo seus dedos. Sentia-os abertos em flor. Na primavera as flores são sempre lindas. E Lé, como toda mulher, gostava de flores. Fez um buquê de palavras flores e tatuou em seu corpo. Ao redor do umbigo.
quarta-feira, 21 de março de 2012
InvenSão IV
Cool da madrugada, em algum pub da rua Brasília, Lé Zinho pedia pela quinta vez que o barman repetisse, no telão, A nigth in Tunisia, interpretação inspirada de Dizzy Gillespie que o tocava profundamente. Pedia e chorava em único e mesmo gesto. Horas antes a cena se repetira com So what, do Miles Davis. A mesma quantidade de repetição e de lágrimas. O garçom, seu chegado, não se importava em intermediar os desejos daquele lobo solitário e sedento. Pensava apenas que a figura poderia se desidratar duplamente: pelo excesso de vinho e de lágrimas. Vez em quando rompia o silêncio cúmplice:
- O que na verdade te fere tão profundamente ao ouvir essas músicas estranhas repetidas vezes?
- Você tem sorte de eu não gostar do Reginaldo Rossi – ironizava Lé – pois agora eu estaria cantando “garçom etc e tal” e seriamos dois a chorar perdidamente.
- Mas Lé Zinho essas músicas não têm nem letra...
- Não importa. Dor e solidão não têm tradução verbal, só trilha sonora. Prefiro chorar ao som de músicas sofisticadas, ainda que “estranhas”. Talvez eu esteja desenvolvendo um conceito de tristeza inteligente.
O garçom quase conseguia entender Lé, pois fora testemunha da cena protagonizada pelo boêmio e uma beldade linda e louca, dessas que flutuam ao seu redor, ainda no início da noite. Nada escutara do que dissera a princesa, mas pelos poemas recitados afetadamente pelo príncipe, falando da impossibilidade de pertencer a alguém, de cantar o amor e não a paixão, deduziu que se tratava de mais um canto à liberdade, mais um solo de palavras estranhas que, parece, vinha das entranhas daquele atormentado ser.
Lé, à distância, adivinhava o pensamento do barman e quando terminou a música solicitada, olhos vermelhos de loucura e pranto, bradou:
- Coloca aquele CD do Edvaldo Santana que tem Lobo solitário. Essa tem letra. O garçom vai gostar.
- “Falam que pra mim o sinal está fechado / que sou muito ansioso / chego sempre atrasado / que eu não vou dar em nada / que sou muito arrogante / um cavaleiro errante na madrugada”. O cara te conhece? – gracejou o barman.
Lé Zinho nada respondeu. Apenas chorava. Antes mesmo de terminar a quinta repetição, pagou a conta, abraçou o amigo garçom, o barman, e saiu cambaleante pela porta entreaberta da madrugada. O relógio na parede cravava o ponteiro maior no doze e o menor no cinco. Sabia que os anjos lhe levariam inteiro para casa. Enquanto vasculhava o bolso em busca da chave, ainda ouvia o refrão da música: “Sou o que sou / um lobo solitário procurando amor / sou o que sou / um bicho na cidade procurando amor”. Sabia da lágrima escondida dos homens.
domingo, 26 de fevereiro de 2012
InvenSão III
Assistiu show. Foi ao bar. Voltou para casa levando aves noturnas recolhidas pelo zoom da objetiva de sua subjetividade.
- Vinho ou cerveja? - Lé Zinho perguntou.
- Que tal os dois? - disse a mais sedenta das aves.
- Então tá. Os dois - aceitou sem resistência.
Foram-se as bebidas, os musicais e os outros ais, restando somente a mais bela ave, a bela nave que se identificou com o seu plano de vôo. Lé lia versos de Roger Waters na tela da TV e ouvia ruídos e movimentos sensuais que a noite inventava. Lembrou-se de Sin e Salomé, de Von Stuck, sem cogitar ir vê-los. Receio? Foi com a ave nave na noite.
Dia seguinte, Lé olhava da sacada ruminando delírios e reminiscências.
Ela disse conta uma estória quando não havia estória alguma. Quando só havia eu e ela para, quem sabe, compor os corpos nus da estória. Mas ela argumentou que sempre pedia e ninguém contava. Achei que devia. Sei que não sabe da minha incapacidade de contar. Prefiro cantar, recitar. Olhos, lábios, seios, umbigo, sexo, todos olhavam desafiadores, esperando emergir a prosa em mim. Contei. Duas estórias. Nada mudou. Ficou muda. Depois com frio. Quis partir. Pensei: por que não pediu uma canção? Por que não fez soar em mim Drummond, Bandeira, Baudelaire, Leminski, Antunes, Mallarmé? Não. Queria estória. Matutei: será que existe disque estória como existe disque pizza e disque droga? Ela pediu estória onde só canção e poesia. Por isso não me espantei quando, ao deixá-la em seu ninho, vi, por entre os dedos iluminados da manhã, seu sorriso lindo se desfazendo em adeuses.
Os olhos de Lé Zinho acompanharam uma revoada de andorinhas que, partindo das antenas sobre o prédio, migravam em direção aos semáforos. Lé fazia pose de quem havia entendido o amarelo do sinal. Então contou de uma vez a estória:
- Era uma vez uma ave exata.
domingo, 19 de fevereiro de 2012
InvenSão VI
Ele: Posso sentar aí?
Ela: Pode. Rola um papo que o ônibus é nosso. Que curso cê faz?
Ele: História. E você?
Ela: Letras.
Ele: Letras? Que onda! O que vocês aprendem no curso de letras? A fazer letras de forma ou letras mortas?
Ela: Nenhuma das duas. A ideia é ler e questionar criticamente a literatura, a gramática e a linguística.
Ele: Nossa, que sinistro! Posso dizer que é um curso crítico?
Ela: Não, seria redundante, pois críticos estão todos os cursos superiores públicos. Mas pode dizer que é um curso de crítica. E o que vocês estudam no curso de história? Estórias da Carochinha?
Ele: Não. Ou melhor, também. O grande lance do curso é problematizar a projeção da fala na história. Essa coisa do oral, tá ligada?
Ela: Tô. Já experimentei com o meu namorado. É uma loucura!
Ele: Não é nada disso, mina. A coisa é séria. Tem até um professor nosso que escreveu ser “a História oral, antes de tudo, perspectiva política, um achegar-se ao ser social, aos homens vivos, aos seus problemas, antes e como condição de uma reflexão, de uma práxis mais atuante, mas complexa e vasta”.
Ela: Caraca, moleque, a figura foi fundo, hein? Quem é a fera?
Ele: Na história oral, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.
Ela: Cara, você me impressionou com essa citação. Pois fique sabendo que um grande autor, que infelizmente não é nosso professor, escreveu que “A crítica não é uma ‘homenagem’ à verdade do passado, ou a verdade do ‘outro’, ela é a construção da inteligência do nosso tempo”.
Ele: Égua, mina, o cara é quente! Quem escreveu isso?
Ela: Na crítica, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.
Pausa de duas paradas.
Ele: Porra, o papo ficou cabeça demais, muito acadêmico, não é mesmo?... Mas mudando de assunto: um bequizinho de vez em quanto cê curte, né?
Ela; Não. Beque só back vocals ou flashback. Sou mais um vinho do que unzinho.
Ele: Nunca ninguém levou você ao tatuzão, para assistir um pôr-do-sol e dar uma bola?
Ela: Não. Nunca.
Ele: Que coisa! E balada, cê se amarra?
Ela: Só a “Balada do Esplanada”, do Oswald de Andrade, e a “Balada de um vagabundo”, do Cazuza. O resto é aluguel e perda de tempo.
Ele: Gata, tenho que confessar: tô pirando na sua. Cê é diferente pra cacete.
Ela: Demorou, hein? Só acho que você tá precisando praticar mais a oralidade... Desço aqui nessa parada. Tiau.
Ele: Ei mina, esqueci de perguntar: qual é o seu nome?
Ela: Em cantada mal dada, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.
Ele: E amanhã, na cantina, posso tentar de novo?
Ela: Não sem ler todinho o Manual de história oral. E depois, Mané, amanhã é sábado. Fui.
Ele: Meu nome não é Mané, é Lé, Lé Zinho. Égua da moleca!...
O ônibus dobrou rumo ao centro, carregado de interjeições e silêncios.