prosa pra pirar

prosa pra pirar
prosa de poeta engasga até profeta

domingo, 26 de fevereiro de 2012

InvenSão III

A sexta-feira chuvosa escondia o pôr-do-sol que sempre incendiava os fins de tarde amazônicos. Lé Zinho adivinhava as margens do Madeira escurecendo como nas pinturas simbolistas de Franz Von Stuck. Pensava em Sunset by the sea e ria do absurdo da comparação. Bebeu de uma vez o suco de cupuaçu que repousava no copo sobre o parapeito da janela e deu início ao ritual de preparação para a noite. Tomou banho. Fez barba. Escovou dentes e cabelos. Colocou jeans desbotado, camiseta básica e perfume preferido. No som do quarto, Lenine in Cité fazia as coisas dançarem. Conferiu o perfil no espelho, ensaiou umas poses, riu e partiu rumo à noite de Porto. Em algum lugar do peito o coração ansiava “um nada de felicidade”.
Assistiu show. Foi ao bar. Voltou para casa levando aves noturnas recolhidas pelo zoom da objetiva de sua subjetividade.

- Vinho ou cerveja? - Lé Zinho perguntou.
- Que tal os dois? - disse a mais sedenta das aves.
- Então tá. Os dois - aceitou sem resistência.

Foram-se as bebidas, os musicais e os outros ais, restando somente a mais bela ave, a bela nave que se identificou com o seu plano de vôo. Lé lia versos de Roger Waters na tela da TV e ouvia ruídos e movimentos sensuais que a noite inventava. Lembrou-se de Sin e Salomé, de Von Stuck, sem cogitar ir vê-los. Receio? Foi com a ave nave na noite.
Dia seguinte, Lé olhava da sacada ruminando delírios e reminiscências.

Ela disse conta uma estória quando não havia estória alguma. Quando só havia eu e ela para, quem sabe, compor os corpos nus da estória. Mas ela argumentou que sempre pedia e ninguém contava. Achei que devia. Sei que não sabe da minha incapacidade de contar. Prefiro cantar, recitar. Olhos, lábios, seios, umbigo, sexo, todos olhavam desafiadores, esperando emergir a prosa em mim. Contei. Duas estórias. Nada mudou. Ficou muda. Depois com frio. Quis partir. Pensei: por que não pediu uma canção? Por que não fez soar em mim Drummond, Bandeira, Baudelaire, Leminski, Antunes, Mallarmé? Não. Queria estória. Matutei: será que existe disque estória como existe disque pizza e disque droga? Ela pediu estória onde só canção e poesia. Por isso não me espantei quando, ao deixá-la em seu ninho, vi, por entre os dedos iluminados da manhã, seu sorriso lindo se desfazendo em adeuses.

Os olhos de Lé Zinho acompanharam uma revoada de andorinhas que, partindo das antenas sobre o prédio, migravam em direção aos semáforos. Lé fazia pose de quem havia entendido o amarelo do sinal. Então contou de uma vez a estória:

- Era uma vez uma ave exata.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

InvenSão VI

Ônibus Campus/Unir vindo para a cidade,numa sexta-feira.

Ele: Posso sentar aí?
Ela: Pode. Rola um papo que o ônibus é nosso. Que curso cê faz?
Ele: História. E você?
Ela: Letras.
Ele: Letras? Que onda! O que vocês aprendem no curso de letras? A fazer letras de forma ou letras mortas?
Ela: Nenhuma das duas. A ideia é ler e questionar criticamente a literatura, a gramática e a linguística.
Ele: Nossa, que sinistro! Posso dizer que é um curso crítico?
Ela: Não, seria redundante, pois críticos estão todos os cursos superiores públicos. Mas pode dizer que é um curso de crítica. E o que vocês estudam no curso de história? Estórias da Carochinha?
Ele: Não. Ou melhor, também. O grande lance do curso é problematizar a projeção da fala na história. Essa coisa do oral, tá ligada?
Ela: Tô. Já experimentei com o meu namorado. É uma loucura!
Ele: Não é nada disso, mina. A coisa é séria. Tem até um professor nosso que escreveu ser “a História oral, antes de tudo, perspectiva política, um achegar-se ao ser social, aos homens vivos, aos seus problemas, antes e como condição de uma reflexão, de uma práxis mais atuante, mas complexa e vasta”.
Ela: Caraca, moleque, a figura foi fundo, hein? Quem é a fera?
Ele: Na história oral, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.
Ela: Cara, você me impressionou com essa citação. Pois fique sabendo que um grande autor, que infelizmente não é nosso professor, escreveu que “A crítica não é uma ‘homenagem’ à verdade do passado, ou a verdade do ‘outro’, ela é a construção da inteligência do nosso tempo”.
Ele: Égua, mina, o cara é quente! Quem escreveu isso?
Ela: Na crítica, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.

Pausa de duas paradas.

Ele: Porra, o papo ficou cabeça demais, muito acadêmico, não é mesmo?... Mas mudando de assunto: um bequizinho de vez em quanto cê curte, né?
Ela; Não. Beque só back vocals ou flashback. Sou mais um vinho do que unzinho.
Ele: Nunca ninguém levou você ao tatuzão, para assistir um pôr-do-sol e dar uma bola?
Ela: Não. Nunca.
Ele: Que coisa! E balada, cê se amarra?
Ela: Só a “Balada do Esplanada”, do Oswald de Andrade, e a “Balada de um vagabundo”, do Cazuza. O resto é aluguel e perda de tempo.
Ele: Gata, tenho que confessar: tô pirando na sua. Cê é diferente pra cacete.
Ela: Demorou, hein? Só acho que você tá precisando praticar mais a oralidade... Desço aqui nessa parada. Tiau.
Ele: Ei mina, esqueci de perguntar: qual é o seu nome?
Ela: Em cantada mal dada, nomes não são assim tão importantes. Deixa quieto.
Ele: E amanhã, na cantina, posso tentar de novo?
Ela: Não sem ler todinho o Manual de história oral. E depois, Mané, amanhã é sábado. Fui.
Ele: Meu nome não é Mané, é Lé, Lé Zinho. Égua da moleca!...

O ônibus dobrou rumo ao centro, carregado de interjeições e silêncios.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

InvenSão II

Popstar de última geração, Lé Zinho, lap top à mão, cinco minutos antes de começar o show tentava, a todo custo, baixar um mega sucesso cálido y caliente que ouvira num site latino. Não queria mais chorar sobre o bright entornado em turnês de fracasso. Tramava tocar no rádio. Clip na TV. Ninguém notaria a tramóia. Faria parecido, não igual. Chupada eletrônica com sotaque andino. Seria a glória. Rezou pra São Rod Stewart, redentor dos plagiantes, e pirateou a idéia. Piração na rede. Apelo informatizado. Maquiavelismo cibernético.

O guarda-costas, num nada de atenção, coçava as calças assobiando um breganejo goiano. O olhar carinhoso na direção do astro. Fã com o afã nos afazeres.

Eurico, o assistente, contratado para driblar o fracasso, após pouco pensar, proferiu:

- E!U!R!E!C!A!. Que tal a velha e boa discoteca?

- Bom cabrito não berra – declinou o ídolo sem índole.

O empresário, prisioneiro dos ponteiros, fraseou eufórico:

- A galera está gritando a gosto. Carece ouvir tua voz, ver o teu rosto. Vai: é a tua hora. O palco está posto.

Saiu da rede e entrou no palco. Um swing dantes nunca alçado. Metais em brasas. Percussões troando Áfricas. Lé salseando tudo que sabia. Entortando cândidas melodias. Bolerando sem Ravel. Pop tropicanalha. Trejeito porteño. Meio malafo caribeño. Vivendo intensamente o simulacro dos ventos. Velhos os novos tempos. Floriu formas e arrasou de cabo a rabo aquela noite de festa e fama. Foi fortemente ovacionado por violões ovations e por vozes várias. Um sucesso!

Fim de noite, nos braços do guarda-costas, Lé Zinho, ensandecido de vaidades e vodkas, - consciência fazendo peso -, jurava ter visto um brilho sinistro nos olhos de Lucho Gatica. Vingança? Revide? Justiça?

- Valei-me São Rod Stewart! – rezou contrito.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

InvenSão I (para paroaras e paraenses)

Mago amazônida, Lé Zinho vivia alvorado de alegorias líricas. Calhava, às vezes, amanhecer pra épico. Alegrias e alergias mitológicas o tomavam de assalto e o levavam à leitura. À loucura. Cismava horas a fio lendo lendas. Mirando mitos. Lé lia o mundo. Lia lindo.

Nascido a boto, aluava rumores e rubores ribeiros. Assuntava barrancos e bordéis. No mais, era dado a plenilúnios e solstícios. Engolia fogo fátuo. Curava paixão encravada com reza brava e, de lambuja, cozia poemas e panos pra manga. Ah – ia esquecendo -, bebia um chá, diz-que.

Manhã de agosto, gastava a morenice tirada das árvores – mulateiro ou rouxinho? – manhosando olhar no aceiro do horizonte. O raciocínio rabiscando réstias. A atenção periférica ativada. Num repente, soslaiou uma figura fugidia. Modos diáfanos. Uma sinestesia, quase. Linda! Firmou o foco. Reparou na lua do branco do olho. No bronze da nudez. Pirou! Encantou palavras e parlou:

- Aonde, jantão, tu pensas que vai, enjoadinha?
- Vou à fonte falar miolo de pote – disse a pequena.

Amaciou e emendou o mago:

- Pensas que me engana, Ana? Sei sussurros e suspiros ao teu desfile de garça. Fálicos e frouxos desfalecem. Tua tez, tua pose, teu pavoneio de prosa, sei com quem tens parte. Tua arte, sei da sorte.
- Sabes? – devolveu a dita.
- Sei. Por isso, aquelazinha, fica no meu verso, no meu vasto. Vadeia o que em mim é tucuxi.

Ela elidiu o lastro lustroso da lábia do mago e retrucou:

- Nem morta, mano! Do trocadilho do teu texto, do vírus do teu vernáculo e do oráculo do teu sexo, quero distância. Ficar no teu verso? Mas quando.

Lé Zinho, nortizando palavras de ordem woodstockianas, promessou porção mágica, sexo e carimbó no ouvido da felina.
Tonta e tantas, tripudiou sobre a excitação transfigurada do artífice. Foi à fonte.

- Pávula! – praguejou o pajem – tu me pagas!